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Será que a punição por crimes fiscais no Brasil é mesmo extinta com o pagamento do tributo?

2 de setembro de 2024

Uma leitura atenta das notícias mais recentes sobre operações relacionadas à sonegação fiscal no contexto empresarial revela um cenário muito mais perigoso para os investigados: como forma de burlar a Súmula Vinculante 24 – que obsta a persecução criminal por crimes tributários materiais -, acumulam-se as imputações de organização criminosa (art. 2º da Lei 12.850/13) e de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei 9.613/98). Em que pese o “combo” não ser novidade, vem crescendo bastante recentemente.

Esse movimento persecutório é uma resposta à percepção de que o empresariado costuma fazer um cálculo de risco ao lidar com repercussões penais-tributárias. Como a punibilidade da acusação pelos crimes fiscais é extinta pelo pagamento do tributo (ou suspensa, no caso do parcelamento da dívida), na cabeça dos investigadores, o contribuinte pensa que basta pagar para se livrar de uma acusação. Diante dessa visão, os órgãos de fiscalização resolveram aumentar o custo.

Com o triunvirato acusatório, obtém-se com maior facilidade medidas cautelares, sobretudo patrimoniais, tudo facilitado pela também crescente troca de informações entre agências estatais, cujos limites legais são bastante turvos – seja no plano legislativo, seja no jurisprudencial. Não deixa de ser curioso que a Receita Federal (vide Portaria 393/24) aloque nos auditores fiscais o poder-dever de comunicar fatos que possam ser percebidos como lavagem de capitais.

De partida, importante registrar que atrelar os três delitos de forma automática é um erro primário porque existem fronteiras técnicas consolidadas que indicam que o concurso de crimes nesses casos é a exceção e não a regra. 

Nesse contexto, tratando da relação entre sonegação fiscal e lavagem de dinheiro, há uma série de parâmetros que disciplinam quando os dois delitos podem ocorrer de forma congregada. Standards que não parecem ser alvo de muita consideração por parte das autoridades na hora de acusar, pedir pela prisão ou buscar o bloqueio de bens dos investigados.

Escapa do objetivo desse texto buscar delinear os requisitos mínimos para o combo acusatório. Foca-se, então, em um dos vetores desse enorme debate: os efeitos do pagamento do tributo devido – e a consequente extinção da punibilidade quanto ao delito tributário material – diante das figuras da organização criminosa e da lavagem de capitais.

O Informativo n. 805 do STJ traz acórdão em que o tribunal considerou que o pagamento (e, assim, a extinção da punibilidade) esvaziariam a acusação tanto de lavagem, como de OrCrim (organização criminosa). É preciso, porém, ler o acórdão com cuidado. O efeito puramente legal do pagamento do tributo devido, inclusos multas e acessórios, é a extinção da punibilidade. 

Essa circunstância, porém, não é suficiente para excluir nem a imputação de OrCrim, nem de lavagem (quanto o último, inclusive por dicção expressa da Lei n. 9.618/98, art. 2º, § 1º). Há, porém, outro efeito decorrente do referido pagamento, desde que anterior ao término do procedimento administrativo tributário: impedir a tipicidade da conduta. Chamemos esse efeito de jurisprudencial.

Nos termos da SV 24, não há tipicidade antes da preclusão consumativa; logo, o pagamento antes da preclusão impede a tipicidade. E isso faz toda a diferença. Por conta da redação da SV 24, se houver uma estrutura estável e organizada voltada à prática de fatos atípicos (e não meramente impuníveis), falta adequação típica para a OrCrim; da mesma forma, só se pode lavar capitais oriundos de infrações penais, ou seja, de fatos típicos, antijurídicos e culpáveis (e não simplesmente, repita-se, impuníveis).

Disso não se conclua, por óbvio que, não havendo o pagamento, então tem-se o triunvirato acusatório, para além do que afirmamos quanto à exceção. É perfeitamente possível haver um juízo positivo quanto ao ilícito tributário, que, pelas circunstâncias, militam contra o juízo de OrCrim e lavagem.

Imagine-se a empresa que, diante de grave situação financeira, maneja fraudes para reduzir o crédito tributário. Um juízo confirmatório de culpabilidade no campo da sonegação não se comunica com a conclusão de que há OrCrim (ou lavagem). Ao contrário. É requisito tanto da OrCrim como da lavagem uma vantagem que, em que pese a grande abertura interpretativa, pressupõe um plus, uma sobra, algo que excede. No caso imaginado, a fraude aliviaria o fluxo de caixa para pagar salários ou fornecedores, mas não para criar vantagem positiva, por assim dizer (ainda que se possa percebê-la como uma vantagem relativa, negativa, na medida em que aliviaria o caixa).

Em resumo: primeiro, o combo “sonegação” + OrCrim + lavagem é excepcional. Segundo,investigações pelo “combo” devem, desde logo, apontar os indícios concretos de que haveria o “combo” à luz dos requisitos típicos. Terceiro, o pagamento do tributo devido antes da preclusão consumativa, à luz do texto da SV24, obsta a tipicidade do crime tributário e, por arrastamento, dos de OrCrim e lavagem. Quarto, mesmo em casos em que haja juízo afirmativo quanto ao crime tributário, as circunstâncias podem, ao contrário de confirmar o combo, afastá-lo, sobretudo em torno do elemento típico da vantagem (que deve ser compreendida como um plus, um excesso, de caráter positivo, portanto).

Fonte: JOTA por Davi Tangerino e Luiz Augusto Rutis

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